As coincidências

Esta é a primeira noite que olho pelo janelão e vejo qualquer coisa além de névoa. Erra brutalmente quem pensa nas águas de Março como fenômeno puramente tropical — está presente no hemisfério norte também, mas com requintes de crueldade de um tempo que varia de 0 a, no máximo, 7 graus.

Juro que nos primeiros dias não foi um incômodo. Olhava até com um certo conforto do quarto aquecido e pensava: “Melhor que neve”. O tempo nublado também é bom nas manhãs, principalmente quando se esquece de fechar a persiana e o impolido Astro Rei lhe dá um cantarolante “bom dia”.

Mas ao sair de casa, o céu de brigadeiro é convidativo. Não há preguiça maior que aquela configurada logo depois do café. É um momento que não se quer viver — e se o dia está nublado, então. Deus me livre da manhã preguiçosa.

A vida deveria ser reservada para a tarde/noite: — nada de bom ocorre pela manhã. Já viu anúncio de loteria antes do meio-dia? E o futebol às onze da manhã? Que sacrilégio. Num domingo, ainda por cima. Torcedor que vai ao campo nestes horários é um homem de bem e não deveria frequentar os estádios.

Pois há no futebol um drama que não deveria ser contemplado por gente boa. Imagine o trauma de um idôneo ante as injustiças do esporte? Um gol aos quarenta e cinco do segundo tempo que redime o pior e penaliza o melhor? É capaz que este saia do estádio transformado em um canalha, crente nas injustiças da vida.

Agora, no entanto, deixemos as injustiças de lado. Quero falar em coincidências. Está para acontecer delícia maior nessa vida que uma boa surpresa, que carrega em si um ato quase subversivo de não seguir a fórmula tediosa do universo.

A coincidência é um daqueles momentos que duas improváveis retas se cruzam de costas. Diria até que provém da falta de sutileza do destino — o tempo é muito curto, há muita gente. Não é possível que tudo aconteça, o tempo todo, de forma normal na vida de todo mundo.

Deve ser por isso aquele gosto especial de uma coincidência, como se fosse possível tatear o tempo, mesmo sem saber seu rumo.

Ex-namorados que sumiram, perderam o contato e, de repente, pimba — se encontram numa festa. Ou dois amigos de infância – 20 anos separam a última pelada no campinho do bairro – que esbarram no aeroporto. O mundo até cheira diferente e o tempo descompassa.

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