Escritas e retas

Não há pânico maior para um escritor do que perder seu dom de escrever.

Veja bem que quando cito “escritor” é no sentido mais abrangente que esta palavra pode ter. Desde um Nobel de Literatura ao usuário do Twitter. Estará mentindo descaradamente quem alega acordar com uma crônica na ponta da língua.

Posso dar meu testemunho. Tenho um aperto danado de como esse texto vai acabar, e quero compartilhar tal dificuldade contigo.

Mas sabe o que eu percebo, leitor? Não é um medo de perder a habilidade da escrita — é não ter o que contar.

Por exemplo: dirigia, neste domingo, de volta para casa. Pouco mais de 160 quilômetros de um itinerário chuvoso pintaram minha tarde de cinza. Uma viagem que não queria ver ninguém bem. Impressiona como um dia pode ser azedo.

E há algo pior que o clima: a estrada era uma reta. Não há nada mais tedioso nesse mundo que uma estrada reta, meu Deus. Deixo uma súplica aos engenheiros: invistam em curvas, chega de retas. Essa segurança que existe na menor distância entre dois pontos é de uma tediosidade monumental.

Perceba que nada de novo aparecerá numa reta — plana, ainda por cima. Diferente das curvas, que guarda beleza, descoberta e lirismo: que trovador deste mundo já declarou preferir as retas da Autobahn?

Olhava para meu GPS nervoso, mendigo de uma única curvinha.

E eis que ela surgiu. Ainda que distante, mas já como um prenúncio do progresso: “Curva suave a direita”, dizia a voz feminina e robótica do aplicativo. E eu me alegrava: “Ainda há poesia neste mundo!” Há salvação!

Era como um cântico cristão — batista, para ser exato. Foi messiânica a anunciação de uma curva. O mundo continuara cinza, mas ganhou leves traços de aquarela. Logo ela veio. E adivinha? Mudou tudo. Chegou a cidade e sua silhueta — tinha um certo ar gótico e sombrio, em razão da forte neblina que se pôs na noite.

E quer saber? O escritor não tem medo perder seu dom — teme a escassez de curvas.

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