Não há mistério

O relógio marca exatas seis horas da tarde. Ele se levanta, veste o blazer — em repouso durante todo o dia, na cadeira — e deixa sua sala. “Vinte anos e até hoje não entendo o blazer”, pensa.

Entra no carro e automaticamente toca para casa. Ao estacionar na garagem do loft, é acometido por uma tremenda sede, cujo único antídoto provém da cevada. “Agora não há mistério. Quero beber, vou ao bar e pronto”, concluiu.

Sentou numa daquelas mesas de aço, mostrando nenhuma pressa em seus atos. Como não havia mistério, pede uma Brahma.

— Ah, e traga uma porção de filé com mandioquinha, ouviu? No capricho!

Se sentia tão vivo como um garoto recém introduzido à boemia. Depois de tanto tempo, experimentava a sensação de viver ao bel prazer. Pensou, eufórico, “Realmente não existem mistérios. É ter liberdade e pronto!”

Sacou o telefone, a fim de contar as boas novas para o Marcelo da Cunha Tavares, um brilhante redator. “O Marcelo precisa saber dessa nova. É capaz dele até fazer uma crônica em exaltação à liberdade de um homem”, pensou.

Discou duas vezes, em vão. Em ambas tentativas, caixa postal. “É mesmo, aniversário de casamento. Havia me avisado ontem.”

Após bloquear a tela do telefone, reparou na clientela do bar, de súbito. Havia, numas duas mesas a seguir, um casalzinho. E ponha diminutivo nisso. Não haviam hipóteses de ali haver muito mais que dois meses de namoro.

Era um amor tão sufocante que doía. Se uma das partes ousasse levantar-se e ir ao banheiro, era capaz do outro amado morrer de amor.

Por um momento, ele se lembra do começo de seu namoro, há algumas décadas atrás. Lembrou-se da primeira vez que pagou uma Coca-Cola e levou sua namorada ao cinema. Ir a um bar? Imagina. Os tempos são outros. “Não há mesmo mistérios”, concluía.

Chega a porção de mandioquinha e filé. Era se capaz de distinguir um certo capricho extra na montagem do quitute, como pedido.

O casalzinho, no entanto, não sai de sua cabeça. Entre uma garfada e outra, se pegava olhando para os pombinhos.

Por um momento, pensou em tudo que aqueles dois ainda enfrentarão nessa vida. Contas atrasadas, filhos chorando, visitas dos sogros, filhos gripados. Ainda assim, a presença de um sentimento de companheirismo, na saúde e na doença, o emocionou, subitamente.

Quando olha para a outra cadeira em sua frente, está vazia.

Problema este plenamente resolvível em, se bobear, duas saídas. Correndo o risco de se tornar mais um dos tais casalzinhos, inclusive. E correndo o risco de, quando o avassalador turbilhão da paixão passar, não haver as histórias de contas atrasadas, dos filhos chorando, de visitas dos sogros e dos filhos gripados.

Seu olhar se perde no horizonte. “Não há mistérios”, pensava repetidamente. Cabisbaixo, paga o que deve ao dono do estabelecimento e se retira. Em vez de subir ao loft, entra no carro.

Seu destino? Seu patrimônio.

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