A descriminalização do porte de maconha oficialmente alcançou maioria no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento, que durou nove anos, pode significar um passo sólido da democracia brasileira nos âmbitos de saúde e segurança pública.
O assunto, no entanto, foi engolido pela guerra cultural que fagocita qualquer debate no país. Assim como o aborto, a descriminalização faz parte da família de tabus conservadores nacionais. Qualquer um reconhece isso ao tentar conversar sobre o assunto em um almoço de família ou na mesa de um bar.
E sabe quem se aproveita de tabus e pânicos morais para crescer? Grupos de extrema-direita. Principalmente pelo fato de serem imbatíveis nesta arena de discussões. Inclusive o debate moral desses tópicos, cindido entre ser bom ou ruim para o país, já os dá larga vantagem.
A realidade factual, baseada em estatísticas e estudos, mostra que um em cada cinco detentos brasileiros está preso de maneira injusta. Cerca de 40% da população carcerária nacional não tem condenação.
Uma considerável parte dessa massa de presos está, por exemplo, a espera de julgamento por porte de maconha. No caso, enquadrados como traficantes. Uma realidade enfrentada sobretudo pelos pretos de tão pobres e pobres de tão pretos – os marginalizados, detidos e violentados por uma máquina de repressão estatal, nossa maior herança dos períodos de ditadura que vivemos ao longo do século XX.
Portanto, fica evidente que a criminalização das drogas no Brasil serviu sobretudo como um aparato estatal de perseguição de certa parte da população. Uma poderosa estrutura legal, sustentada pelo pânico moral do ideário conservador nacional.
Esta análise que acabei de tecer de nada serve diante de uma concepção que o uso de maconha, por exemplo, é regido por forças malignas e diabólicas. A ordem de prioridades na visão de uma pessoa que pensa assim não considera os fatos, mas seus afetos mais arraigados.
E esses afetos, por serem populares em diversos grupos brasileiros – não só em nossa elite, mas também entre o povo – molda a política, a comunicação, e, se descuidarmos, também interfere nas instituições democráticas.
A evolução do reacionarismo nos legislativos estaduais e em âmbito federal não me deixa mentir. Vemos hoje um Congresso que reflete os anos de lava-jatismo no debate público brasileiro. Não que historicamente sejamos um primor de democracia e progressismo (muito pelo contrário). Mas desde a retomada democrática de 1988, nada de tamanha agressividade havia sido visto no parlamento nacional.
Portanto, neste contexto de forte e assimétrica luta política entre incentivadores da barbárie e os minimamente democratas, é evidente que o STF precisa utilizar de sua prerrogativa constitucional para ter poder de decisão em situações como esta. Agir pela descriminalização é também buscar desmontar este aparato injusto da nossa segurança pública, que transforma a carne preta na mais barata do mercado.