Um dia na vida

Cinco horas e cinquenta e quatro minutos pelo horário de Brasília. Você fica agora com a jornada esportiva na sua rádio Brasil.

Cláudio abaixa o volume do rádio e dobra à direita na avenida movimentada, sentido bairro. O trânsito começa a parecer mais cheio e, de lambuja, a garoa passa a cair no para-brisa do carro. Um forte indício de que os motoristas da cidade perderão sua habilidade e compostura na volta para o lar.

Ele é um dos que também bate em retirada. Está pelas ruas da cidade desde pouco antes das 8 da manhã. Sua região preferida para atender é perto dos hotéis mais movimentados da cidade. É a hora que tem muita gente precisando de uma corrida para o aeroporto.

Hoje pela manhã ele acertou uma dessas figuras. Um executivo em viagem. Esperava no hall de entrada de um fino hotel da cidade. Usava uma camisa social pouco amarrotada. Seus parcos cabelos grisalhos eram cuidadosamente penteados para trás. Segurava numa mão um café expresso num copo de papel. O outro braço torcia um terno já meio amassado, que claramente não via um ferro de passar há algum tempo.

Enquanto isso, falava ao vento. Gesticulando, caras e bocas, como quem explica a campanha da Itália a uma sala cheia de secundaristas. Antes que Cláudio pudesse concluir que o coroa era biruta, percebeu um pequeno fone de ouvido sem fios que piscava em sua orelha.

Tiveram aqueles três segundos de checagem mútua entre passageiro e motorista. Cláudio desceu e ajudou o senhor com sua mala. Uma daquelas compactas, de algum material plástico. Tinha marcas e tags de pelo menos cinco companhias aéreas, como gritantes alertas de FRÁGIL, além de um adesivo do Hard Rock Cafe L.A em destaque.

— Mendonça, te falei isso na semana passada. Se a gente não reduzir metade desse custo fixo aí, até o final do ano a gente tá fudido. É melhor nem correr atrás desses alemães pra renovação nenhuma, entendeu?

Cláudio tenta perguntar se deve seguir o caminho sugerido pelo GPS. Ao se perceber ignorado após alguns segundos, decide utilizar a rota do telefone. “Os coroas costumam ser mão-aberta na gorjeta”, pensou.

Não dessa vez. A figura só se dirigiu ao motorista após vinte minutos de viagem.

— Vem cá. Não tem um trajeto menos engarrafado que esse não? Puta aeroporto longe esse de vocês, hein. É uma viagem por si só para chegar lá.

Se Cláudio ganhasse 10 reais por passageiro que reclama da lonjura do aeroporto, e pedisse por uma rota alternativa ao engarrafamento, não precisaria mais rodar nos aplicativos da vida. Na volta, foi pegando passageiros de bairro em bairro, até cruzar a cidade e se ver de volta à zona sul, perto da hora do almoço.

O aplicativo oferece uma corrida na Felipe dos Santos, a cerca de três quarteirões de sua localização. Quando Cláudio chega, saem de um prédio espelhado, através de um portal automático com fortes luzes brancas ao seu redor, um casal de jovens adultos. Ele de terninho, calça jeans e tênis Osklen. Ela de vestido e scarpin preto, e uma grande bolsa de algo parecido com couro, com detalhes em dourado.

— Eu já te falei que o Kléber, gerente da Invest Gold, quer mais que a gente se exploda. Se dependesse dele rasgaria nosso contrato agora, Ana.

— Esquece desses caras, pelo menos na hora do almoço, vai. Impressionante como você leva essas coisas para o lado pessoal. Se der merda vamos fazer o quê?

Ele se sentou logo atrás de Cláudio, enquanto Ana recostou a cabeça no encosto de seu banco, fechou os olhos, e soltou um profundo suspiro.

— Não esquece que no domingo tem aniversário de um amiguinho do Pedrinho, ele quer muito ir e eu tenho competição no Cross. Se fosse você almoçava com ele na sua mãe e ia direto para a festa depois.

O silêncio tomou conta até que o destino, uma cantina italiana famosa, chegasse.

Passado o horário de pico e do trânsito neuroticamente travado, as corridas entram tarde adentro com mais fluidez. Cláudio recebe um chamado em uma casa. Uma das poucas casas que restaram naquele bairro. O portão não escondia o modesto jardim de dentro, que precisava de um carinho. Um chão de pedra sabão levemente encardido pelo tempo. Sai de dentro uma moça, morena, de jaleco, camiseta e calças brancas.

Ela puxa com cuidado, numa cadeira de rodas, uma senhora. Olhar perdido, mãos repousadas sobre as pernas. Cláudio desceu para abrir a porta do carro e ajudar a acomodar as passageiras dentro. Era sempre algo mais trabalhoso nesses casos. Pegou a cadeira, ajudou a dobrá-la ao máximo e a colocou no porta-malas.

O destino era um hospital. Seria para diálise? Ou talvez exames de rotina. Quantas vezes por mês um velhinho precisa ir ao geriatra? “Nunca havia parado para pensar nisso.”, percebeu.

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