Ao longo do século XX, o criamos espécie de falácia cultural brasileira, amplamente divulgada, sobre a docilidade do clima nacional. Acostumamos a ouvir que, por aqui, não temos grandes problemas com as mais diferentes formas de agressividade da natureza, como furacões, tornados, tempestades, terremotos.
Intencionalmente orquestrado ao não, este discurso se tornou parte de nossa autopercepção. A construção da identidade nacional de fato passa por uma relação íntima com paisagens, biomas, fauna e flora: aspectos marcantes, reconhecidos mundo afora quando se trata de Brasil.
Na literatura, por exemplo, a temática de natureza encantava e era abordada desde os parnasianos até os modernistas. É claro, cada escritor moldou o tópico à sua necessidade. A música popular, impulsionada pelo rádio no século XX, é fundada em cima de temas que encontravam inspiração nos motivos da natureza, como na obra de Villa-Lobos.
As referências são muitas, e elas ajudam a produzir na identidade nacional uma certa proximidade com a natureza. Venho destacando este termo em itálico, pois parto do princípio que nem a definição do termo é necessariamente objetiva, sobretudo no senso comum.
O fato é que estes significados culturais parecem ter criado uma identificação docilizada da natureza — aqui entendida como o conjunto dos biomas brasileiros. Uma visão idealizada, que retira a subjetividade ecossistemas vivos, que reagem à interferência humana e, por desequilíbrio de um complexo sistema, produzem as mudanças climáticas que vemos acontecer nos últimos anos.
Mesmo a história do século XX no Brasil é marcada por contingências climáticas. A grande migração de populações da região nordeste para os grandes centros do sudeste se deu por anos de seca na região, sobretudo na década de 1950. Não são poucas as histórias de deslizamentos no litoral do sudeste, por exemplo. Um problema antigo para os moradores de áreas de encosta de morros. Enchentes são episódios comuns nas maiores cidades do Brasil.
Cabe ressaltar que é justificado o encanto causado pela biodiversidade brasileira. Não por acaso é parte fundante e fundamental de nossa cultura. Mas reconhecer este histórico por trás da ideia de natureza é necessário inclusive por uma questão de respeito com a causa ecológica.
A urbanização brasileira causou estragos marcantes em todos os biomas do país. Hoje fica clara a consequência: grandes inundações, deslizamentos e secas causam emergências climáticas ao longo de todo o ano.
Portanto, a natureza deve sair deste lugar de objeto docilizado, dominável, e ser colocada como sujeito, que é de fato. Isto, sim, é tratá-la com respeito. Sem condescendências. É necessário ouvir o que dizem os pensadores do assunto, como Ailton Krenak.