Ainda Estou Aqui começa com a protagonista Eunice Paiva (Fernanda Torres), boiando nas águas da praia do Leblon, num ensolarado dia de 1970. Sua paz é interrompida pelo forte som do motor, de um helicóptero camuflado, que atravessa o céu da zona sul carioca. Ela se assusta, olha para cima e observa o instante em que a máquina passa rumo ao centro da cidade.
Esta é a tônica do novo longa-metragem do diretor Walter Salles, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. O atravessamento da vida de uma família pela ditadura militar brasileira, que comandou o país por 21 anos, entre 1964 e 1985.
O longa envolve o espectador ao apresentar um Rio de Janeiro do passado, ainda com casas de assobradadas de quintal grande à beira do mar. As cenas são saturadas na cor e também abusam de granulagem. Parecem forçar em nossa visão uma certa percepção de memória longínqua. Vemos uma família Paiva feliz, carinhosa, solar.
Naquele início dos anos 1970, o Brasil passava por uma forte expansão dos centros urbanos nacionais, sobretudo na região sudeste. O desenvolvimento econômico criou uma classe média nas grandes cidades que, como o filme retrata, experimentava uma realidade de conforto e bonança, ainda que o país, em si, vivesse sob intensa truculência estatal, e uma disparidade de classes ainda mais gritante que a que vemos hoje.
E o grande arco dramático do longa se dá quando as duas realidades se chocam. O pai, Rubens Paiva, ex-deputado, exilado após o golpe de 1964, é sequestrado pelos militares. Na sequência, Eunice e sua filha Eliana, de quatorze anos, também são levadas. Ali toda a docilidade que marcava cada personagem da família Paiva se transforma pelo brutalidade do que ocorre nos porões dos DOI-CODI’s brasileiros.
Eunice está presa e ouve cantar outro detento, no que parece ser uma cela vizinha. Ela se concentra e por um segundo sua existência parece deixar de ser aquele terror, pois a arte existe e se fez presente. Mas a cantoria é logo brutalmente interrompida por um guarda, que, pelos sons ouvidos pela protagonista e por nós, espanca o cantor.
É destas atitudes indesculpavelmente brutal e criminosa da ditadura militar brasileira que Ainda Estou Aqui trata. Que sequestrou a liberdade de tantos ao longo de 21 anos, e nos casos mais trágicos tirou até a vida de quem considerava um algoz. Rubens Paiva foi preso, torturado e morto por receber e distribuir cartas dos exilados para parentes e amigos no Rio de Janeiro.
E deste ponto em diante, quando percebe que agora está só e é a responsável por cinco filhos, agiganta-se a personagem de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres e sua mãe, Fernanda Montenegro, na cena final. Ela não cresce por ser desnaturadamente forte. Pelo contrário, acompanhamos cada soco no estômago que o destino a dá e vemos sua face de desespero e dor. Até mesmo o detalhe do movimento trêmulo de seus lábios em cenas de pavor são marcantes.
Eunice se readequa, se reinventa, e não perde o foco em criar seus filhos e, de alguma forma, ter sonhos. E não há nada de poliana neste argumento. A capacidade de sonhar aqui significa sobreviver. Não haveria vida possível para alguém após um trauma tão profundo, que abalou tão fortemente sua existência, para além dos sonhos.
E quando os anos passam, e o pesadelo se torna uma história do passado, a dor de se ter um desaparecido, que se foi sem grandes explicações por parte dos raptores, influencia a vida de todos. Há uma cena em que os dois filhos caçulas, Marcelo e Maria Beatriz, se perguntam quando se deram conta que o pai não voltaria mais. Cada mostra uma percepção particular, subjetiva, vaga, sobre uma perda tamanha.
Eunice pôde amarrar as pontas te sua história em duas cenas marcantes: o recebimento do atestado de óbito de Rubens Paiva, em 1996, e no momento em que vê, já idosa, com a doença de Alzheimer, uma reportagem que cita seu falecido marido como um desaparecido político. Em meio a um mar de esquecimento causado por sua condição, seu rosto se acende.
Os dois momentos tratam de memória. Aquela certidão de óbito, assim como a reportagem na TV, arrancam um sorriso tenro da personagem. No âmbito pessoal, eram formas de homenagear Rubens e honrar a história que sua família viveu. Mas na escala social, para pensarmos o que é o Brasil, parecem ser os signos que nos alertam para o perigo da truculência antidemocrática. Que nunca nos esqueçamos, para que nunca mais volte a acontecer.