O texto a seguir fará sentido a quem tenha vista a série Pinguim, da HBO Max, até o final de sua primeira temporada.
A série Pinguim, dirigida por Craig Zobel e Helen Shaver, é um dos grandes acontecimentos da indústria do entretenimento em 2024. Em oito episódios de cerca de uma hora cada, somos apresentados em detalhes a uma Gotham City dominada por criminalidade, disputas de poder, vingança e violência.
Este ambiente, comum em todas as histórias do Batman ao longo das décadas, sempre funcionou como uma espécie de caldo cultural nefasto que justifica o surgimento espontâneo de heróis e vilões. Ambos são verdadeiros produtos de uma cidade assumidamente falida: tanto econômica quanto moralmente. O efeito de se saber que o pacto social já não existe mais é o brutal vale-tudo que vem na sequência.
Há quem se vista de morcego e se sinta incumbido de ser o vigilante noturno da metrópole caótica e caída. E há os que veem no poder dos criminosos, que emergem como poderosos, a chance de uma vida de glória. É o caso de Oswald Cobb, o Oz. O protagonista da série é um homem de feição agressiva, com dificuldade de locomoção e um desejo irremediável por sucesso na carreira da máfia. Sua carência, misturada a um profundo instinto violento, o transformam no Pinguim: uma entidade potente, que sabe pensar rápido e se adapta camaleonicamente ao cenário que se impõe na realidade. E que também não sente medo de atropelar quem quer que esteja em seu caminho para conquistar o que quer.
Oz é produto de uma classe média norte-americana empobrecida e marginalizada nas grandes cidades. Aqui, o paralelo com Nova York não poderia ser mais visível. A Gotham que vemos nos flashbacks da história é um pouco da metrópole de Martin Scorsese em Taxi Driver (1976) ou no Touro Indomável (1980). A perspectiva de um futuro à moda american dream se dissolvia diante do choque do petróleo dos anos 1970, e da perda da estabilidade econômica crescente no ocidente vencedor da Segunda Guerra.
A geração do protagonista, filha ou neta dos imigrantes europeus das guerras, encarou uma vida adulta sem a perspectiva dourada das décadas de cinquenta e sessenta do século XX nos EUA. Pelo contrário, passavam ali pelos anos de austeridade econômica dos governos republicanos de Ronald Reagan. É sintomático, portanto, que o pequeno Oz demonstre tanta admiração pelos mafiosos do bairro. Eles criaram no garoto uma perspectiva de futuro, uma possibilidade de realizar seu desejo de poder.
A história chega a acentuar este traço de personalidade quando coloca os valores diametralmente opostos em seu irmão mais velho, Jack. Ele iria para o exército e condenava os mafiosos locais. Oz demonstra ser atormentado pelo fantasma do irmão. Não no sentido espiritual da coisa, mas na moralidade. O que o irmão pensaria do que ele se tornou? Valeu a pena?
Oz não queria lidar com a resposta desta pergunta. O ponto talvez mais chocante da série, o fratricídio dos dois irmãos, demonstra que, para ele, era mais fácil destruir o outro, que o impunha o temor da desaprovação ou a competição pela atenção da mãe. Ele não suporta a ideia de compartilhar seu objeto de desejo ou mesmo de ser contrariado por quem importa. Nestes casos, mata por impulso. Acaba com o problema antes que este consuma sua paz.
Quantas vidas Oz teve que ceifar, ou aprisionar, para ter o que queria? Quantas histórias foram colocadas no altar das oferendas para que ele se tornasse o chefe do crime em Gotham? Seus irmãos Benny e Jack; Victor, que passou a ocupar um certo espaço de irmão mais novo em sua vida; e mesmo Sofia Falcone, que teve de assumir a persona de homicida em série mesmo sendo inocente.
Pinguim, enquanto obra, parece se estruturar em cima do ideal trágico para desenvolver sua trama. A história começa com um rei morto, como em Hamlet. A partir daí, o desequilíbrio do poder cria brigas sangrentas pelo comando. E no fim, a catarse se dá no palco de uma antiga boate. Que também é palco das reminiscências de uma mãe arrependida, Francis Cobb. Naquela encenação, ela fala o que nunca havia tido coragem de admitir ao filho. E ali tenta consumar o que poderia ter evitado toda uma vida de violência e tragédia, ao enfiar uma garrafa quebrada na barriga do Pinguim.
No entanto, ele sobrevive. Francis, por outro lado, vegeta numa cama, após sofrer um derrame na cena catártica. Ali, Oswald conquistou tudo que queria. Menos receber reconhecimento de sua mãe. Pelo contrário, a última lembrança que terá dela ativa, antes de estar acamada, é de profunda violência. Ela, por sua vez, conquistou o luxo que tanto pediu ao filho: mas agora, em cima de um leito hospitalar. Valeu a pena?