Chico Buarque lançou, em 1984, o sexto de seus discos batizados com seu nome. A capa traz o artista de azul, inquieto, em movimento, em contraste com um fundo bordô. O título é discreto, branco, no canto superior direito do encarte.
O repertório por sua vez ajuda a contar um pouco da história do Brasil nos anos 1980. Os tópicos, simultaneamente cotidianos e políticos, abordam amores vividos, desfrutados, frustrados, e também as desilusões das infidelidades. E há sobretudo um pouco de mais leveza, talvez por se tratar de um projeto no último ano completamente absorto no regime militar, que completava 20 anos, e cairia de podre na sequência, em 1985.
Em Brejo da Cruz, ou no samba-enredo de Vai Passar, Chico já ilustra questões sociais e políticas, inclusive digerindo todo o período militar, de maneira cristalina, sem a necessidade do drible premeditado à censura. De uma certa forma, esta liberdade poética se confunde também com uma sonoridade limpa, translúcida, típica da recente e crescente digitalização dos estúdios de gravação, que passavam a permitir este padrão.
Mas talvez o subtexto mais interessante possa estar no Samba do Grande Amor. Trata-se de um eu-lírico que lida com esta figura do ‘grande amor’: que, neste contexto, tem seu sentido deslocado de seu significado clássico, popularmente romântico, sobretudo. Aqui, o grande amor é inconveniente, um pouco sacana, não digno de muita confiança. A ponto de, no final, ser ironicamente desconstruído pelo autor: Chego a mudar de calçada/ Quando aparece uma flor/ E dou risada do grande amor.
Mas Chico, no alto de sua genialidade que não demanda apresentações, pontua o fim de cada estrofe com uma lacônica e dúbia expressão: mentira!
Tinha cá pra mim/ Que agora sim/ Eu vivia enfim o grande amor/ Mentira! Qual é a mentira em questão? O que acabou de ser falado pelo eu-lírico? Ou aqui a mentira é uma expressão de reforço da narrativa colocada? A resposta varia no contexto de cada estrofe, e variará sobretudo conforme o gosto e o humor circunstancial do ouvinte.
Ainda mais a fundo, quem é esta figura do grande amor? Será que ela está preza ao nível das relações individuais, no parceiro que causa desilusão, ou também pode ser compreendida em um cenário social mais ampliado, geral?
Os anos 1980 são, em todo o ocidente, primeiro mundo ou periferia, um momento de avanço das economias de mercado para novos territórios. Um crescente número de países do mundo subdesenvolvido aderia a modelos econômicos de estado mínimo, a fim de conquistar crédito com instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Portanto, espalha-se pelo mundo não só a financeirização de áreas fundamentais como educação, saúde e segurança, como também um acelera o avanço da transformação de tudo em infinitas categorias de mercadoria. Sentimentos, ideais, carreiras, e até ideologia passaram a ser construídas e definidas sobretudo pelo consumo. A felicidade passava a estar na pílula de Prozac, enquanto a liberdade e a emancipação feminina podia ser comprada numa caixa de medicamento contraceptivo. A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante, escreveu Humberto Gessinger em Terra de Gigantes, lançada no LP A Revolta dos Dândis, dos Engenheiros do Hawaii, em 1987.
Em Ideologia, música de Cazuza em parceria com Nilo Romero e George Israel, também de 87, há imagens desta transformação dos ideais em commodities: Meu partido/ É um coração partido/ E as ilusões/ Estão todas perdidas/ Os meus sonhos/ Foram todos vendidos/ Tão barato que eu nem acredito/ Ah, eu nem acredito. Aliás, seria preciso transcrever toda a letra para dar conta das referências a este cenário. Cazuza parecia ali ser um filtro muito apurado para este espírito do seu tempo.
De volta ao Samba do Grande Amor: a canção parece compartilhar de um sentimento pós-moderno, ressentido com desilusões de projetos de vida outros, passados, arruinados pela realidade que se impõe. Uma análise que serve para a vida privada, como a letra explicita, mas que lê um pouco do cenário social e político do Brasil que pouco mudou em quarenta anos.