Filme no Disco #2: Il Bidone

Esta análise possui spoilers do filme.

O cinema foi, ao longo do período pós-guerra, uma importante ferramenta de reconstrução cultural e simbólica para a Europa. Arrasada por décadas de disputas imperiais, pela ascensão e queda do nazifascismo e pelos milhões de mortos nos campos de batalha e de concentração, era necessário se redescobrir, entender o que se sentia num mundo em profunda transformação.

É neste contexto que se apresenta Il Bidone (1955), sexta obra da filmografia do italiano diretor Federico Fellini. A história nos apresenta a um grupo de trambiqueiros, que ganham a vida de golpe em golpe, contra os mais desvalidos e empobrecidos cidadãos que Roma poderia ter. Augusto, Picasso e Roberto, os protagonistas, vivem no entanto, cada um a seu modo, os conflitos e dramas morais do caminho que tomaram.

Logo na primeira cena, o trio se veste como sacerdotes da igreja católica, a fim de enganar moradores dos arredores rurais de Roma, sobre supostos tesouros enterrados em suas poucas terras. Ao mostrar o baú de ‘joias raras’ encontrado, o grupo pedia uma fração do valor, como parte da igreja no espólio. As vítimas entregam tudo que tem em dinheiro, de boa-fé, em retorno. Em outro momento se passam por empreiteiros. Chegam a uma zona pobre da capital italiana e ‘arrecadam’ dinheiro para construção apartamentos populares.

Uma vez apresentados os trambiqueiros e suas maldades, passamos a conhecer suas subjetividades. Aqui, sobretudo nas histórias de Augusto e Picasso. O primeiro é mais velho, recluso, de semblante fechado e desconfiado, clown bianco. Já o outro é alegre, doce, risonho e ingênuo: um clássico palhaço augusto, por ironia ou não. É notório neste filme, assim como no restante da obra felliniana, a presença dos elementos circenses como parte fundamental da forma de se contar a história.

Picasso teme perder sua esposa, que não gosta de seu trabalho pouco ortodoxo, caso insista na carreira contraventora. Sofre ao pensar em se separar de sua filhinha, ainda pequena. Já Augusto, falando de uma posição de experiência e maturidade, adverte ao colega que, nesta profissão, influência da família é um problema. E que deveria seguir uma vida só, devotada ao trambique.

A história, no entanto, apresenta um lado oculto de Augusto. Nas ruas de Roma, esbarra por acaso em sua filha adolescente, que há muito não via. Este fato é fundamental num processo de mudança drástica na personalidade deste protagonista. A partir daquele momento, os fatos que acontecem consigo, suas decisões e sua visão de mundo são remexidas por uma consciência moral que passa a assombrá-lo nas horas de aplicar golpes.

O filme apresenta uma história simples, bem humorada e até caricata, com as digitais fellinianas impregnadas nos traços de personalidade de cada personagem. A sua profundidade está, no entanto, em nos fazer olhar para os destemperados, desvalidos, pecadores e criminosos com um olhar complexo, entendendo as nuances de seus medos, ansiedades, arrependimentos e maldades.

O aspecto moral não é relativizado, pelo contrário. Mas, findada a história, fica em nossa memória a vida de pessoas ambivalentes, capazes de roubar dos pobres para si e, ao mesmo, de terem atos e pensamentos de doçura.

Augusto, personagem que conduz a trama entre os protagonistas, tem um fim redentor. Não como um arrependido que viveu feliz para sempre com os seus. Mas pelo sofrimento solitário que suas decisões o levaram a encarar. Portanto, o filme que brinca com a imagética católica como forma fácil de roubar os desvalidos, acaba por entregar uma redenção dos pecados na morte: imagem profundamente cristã.

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