A antropofagia nossa de cada dia

Em matéria publicada na quarta-feira 17, a Folha de SP trouxe uma espécie de perfil das barbies mandrake. São produtoras de conteúdo para o Tiktok, focadas em abordar o cotidiano dos bailes funk de São Paulo, que tem como grande marca estética um visual rosa-choque com fortes marcas da boneca da Mattel, em conjunção com elementos do vestuário das grandes periferias brasileiras.

Correntes grossas, óculos Juliet, gorros, bonés, todos sempre rosa. Um visual que mistura referências de uma cultura do vestiário jovem norte-americano dos anos 1990 e 2000, muito aplicado na música pop, entre artistas, apresentadores de TV e outros formadores de opinião. Já Barbie é um fenômeno comercial e cultural de pelo menos meio século, tomando os corações e mentes de crianças em praticamente todo o mundo desde sua criação.

A cultura de massa nas grandes periferias do Brasil é marcada pelo referenciamento criativo aos ícones estéticos da indústria cultural, sobretudo a norte-americana. Esta dinâmica se torna mais evidente a partir dos anos 1980, com a abertura política e econômica do país a partir de 1985.

No entanto, esse consumo criativo do que vem de fora é algo muito mais antigo em terras tupiniquins. Pelo menos desde o início do movimento modernista, que tem sua inauguração institucional em 1922, na Semana de Arte Moderna de São Paulo.

Oswald de Andrade, nome de vanguarda do movimento, escreve em seu Manifesto Antropófago, de 1928: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”

E diferentemente dos outros movimentos modernistas do mundo, o brasileiro se tornou política de estado: a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 elege o modernismo como espécie de estética oficial das ações de governo, sobretudo nas frentes de cultura e educação, com ministros como Gustavo Capanema, por exemplo.

A antropofagia, no entanto, era restrita a certas elites culturais brasileiras. Circulava enquanto conceito principalmente entre cineastas, escritores e músicos. O jazz americano, por exemplo, é responsável pelas características mais singulares da bossa nova. Já o cinema novo de Glauber Rocha bebe da Nouvelle Vague de Godard. Os exemplos são muitos.

No entanto, como dito, a antropofagia de fato ganha escala popular com a reabertura política dos anos 1980. Ela viabiliza o maior acesso a produtos culturais de fora, como a música, o cinema, o jornalismo e todas as outras commodities que se pode pensar. E a evolução tecnológica barateia custos de produção fora das grandes produtoras.

Parece que movimentos como das barbies mandrake são exemplos claros disso. Uma cultura que não é cópia, pois tem seu agenciamento, tem sua atitude. É caminho natural do país ambivalentemente modernista que somos.

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