Uma televisão de tubo transmite, em tons de cinza, um apresentador de notícias trazendo as últimas informações sobre a guerra do Vietnã. No canto direito do plano está uma garrafa térmica, interposta entre o eletrodoméstico e a câmera. A programação corta para um discurso do então presidente Lyndon B. Johnson, que comentava com firmeza a importância de escalar a atuação norte-americana no sudeste asiático.
Esta é cena inicial de Greetings (1968), filme dirigido por um jovem Brian de Palma, ainda com 28 anos. É simbólica para todo o enredo que se construirá nos próximos noventa minutos, pois apresenta o grande mosaico político e social vivido pelos EUA no fim dos anos 1960. A década da contracultura é marcada pelos impactos internos e externos de um dos maiores conflitos vividos na guerra fria e em todo o século 20.
E aqui, de Palma cria este contexto expandido para depois nos apresentar Jon Rubin, Lloyd Clay e Paul Shaw: três jovens nova-iorquinos que conduzirão o espectador pelas ansiedades, paranoias e desejos de uma época. O primeiro, vivido por Robert De Niro no início de sua carreira, é um aspirante a cineasta que carrega consigo, ao longo de todo o longa, o signo do voyeur – aquele que observa sem ser visto – e constitui seu desejo e libido nessa relação.
Já Lloyd Clay devota seu tempo para desvendar o que há por trás do assassinato de John F. Kennedy, ocorrido em 1962 em Dallas. O evento, como é popularmente sabido, foi e é cercado até hoje por dúvidas. Teria sido de fato a ação de um lobo solitário, Lee Harvey Oswald, ou a tomada do poder por forças antagônicas a JFK, conservadoras e militaristas? Na década de 1960 as dúvidas eram ainda mais latentes, dada a proximidade temporal, é evidente.
Clay demonstra paranoia pelo assunto, muito evidenciada na cena em que, ao expandir negativos de fotos do momento do assassinato do então presidente, jura enxergar o verdadeiro assassino, e aponta para um borrão numa fotografia. A imagem era indiscutivelmente inconclusiva.
E por fim, Paul Shaw é um jovem angustiado com seu futuro chamado à guerra. Está em processo de alistamento e discute com os amigos as possíveis formas de cair fora da caserna. Ele também protagoniza cenas episódicas de encontros amorosos arranjados virtualmente, por computador. Cada novo date é marcado por uma experiência singular com mulheres de personalidade marcante, despidas de um comportamento disciplinado por regras patriarcais. Lidam com o desejo sexual ativamente, e colocam Shaw numa certa posição de passividade nas cenas. Talvez uma intuição do roteiro em enxergar a crise da masculinidade que se acentua nas últimas décadas.
De Palma, portanto, cria um mosaico de histórias que se conectam numa escala individual, pois trata de uma turma de amigos, mas que também tem paralelos de conexão à conjuntura política e social daquele momento. São histórias de contestação, que evidenciam o descompasso entre o pensamento de uma juventude urbana, que passaria a ter crescente poder e voz na sociedade, e um establishment profundamente conservador, sobretudo após a morte de John Kennedy e da entrada norte-americana na guerra do Vietnã.
O fio condutor dessa simbologia parece ser, inclusive, a extrapolação da condição de voyeur para um diretor de cena, e o potencial político que esta relação gera ao emissor do conteúdo. Jon Rubin convence uma mulher a posar se despindo em seu quarto, simulando uma situação de voyeurismo, colocando a câmera atrás de uma porta entreaberta e, portanto, enquadrando a imagem que vemos.
Ele comanda a cena indicando como ela deve agir: com naturalidade, como se não estivesse sendo observada. No fim, quando a atriz em cena está quase nua, Jon invade o enquadramento e se deita na cama, enquanto a atriz se indaga: “como você entrou pela minha janela?”. Ali, ele deixa sua posição passiva, que busca simular seu desejo, e ativamente atua na cena.
O paralelo se dá na cena final do filme. Jon aparece fardado, levado ao front de guerra, ao vivo em uma cobertura televisiva. Neste momento, a câmera encontra uma mulher vietnamita um pouco a frente, na cena. Ele mira seu rifle para a camponesa mas não a mata. Pelo contrário, se aproxima dela, pede para que se sente em um banco, e dirige uma cena semelhante, utilizando a estrutura da televisão como sua equipe de cinema. De Palma então insere cortes da primeira gravação ainda em Nova Iorque, intercalando com as imagens do Vietnã, para gerar a conexão semântica.
O longa parece tratar, desde sua primeira cena até a última, sobre o poder que tem aquele que observa, registra, edita e lança a informação no mundo. Sobretudo num contexto centralizado das cadeias de televisão, que ganhavam maior capacidade de cobertura pela chegada da tecnologia de transmissão de imagens por satélites.
Quem seria capaz de factualmente aferir se a versão oficial da morte de JFK é a verdadeira, se a imprensa que cobriu e registrou o acontecido também faz parte de um contexto social com interesses políticos bem definidos? Ou mesmo como determinar o quão sólida era a situação norte-americana na guerra do Vietnã, que acabou não sendo exitosa para o império norte-americano frente às táticas de guerrilha na selva?
A indústria cultural usa de todo o aparato imagético, seja ele ficcional ou não, para produzir uma certa lógica de pensamento. Gera vilões e mocinhos, enquadra atores como for de melhor interesse para a constituição de sua narrativa e, por fim, acaba por gerar um duplo da realidade. E nesta ficção o diretor pode se levantar e buscar o corpo da atriz, vindo pela janela. Ou as emissoras de televisão podem definir uma visão mais otimista sobre os resultados práticos do conflito no sudeste asiático. Ou mesmo o governo pode classificar e restringir o acesso à documentação que torna mais clara a história do assassinato de JFK.
Tudo isto pode acontecer pois o aparato de comunicação da sociedade ocidental moderna serve a interesses políticos e econômicos de uma certa classe dominante. Portanto, seu compromisso não é com a apuração dos fatos, mas com seu desejo final. Brian de Palma parece brincar com estas ideias ao associar a história de um voyeur com a cobertura da guerra do Vietnã.