Filme no Disco #4: Julieta dos espíritos

Quem são os fantasmas que povoam e moldam nossa realidade? De que matéria são feitos? O que suas existências contam sobre nossa história e memória? Estas e outras perguntas parecem ser o fio condutor de Giulietta degli spiriti (Julieta dos espíritos), de 1965, do diretor italiano Federico Fellini.

O longa conta a história de Giuletta, uma doce dona de casa, que vive em seu cotidiano as dores e delícias de fazer parte de uma certa burguesia urbana italiana da década de 1960. Somos apresentados à personagem na cena de abertura de modo indireto, sem que vejamos seu rosto, mas por reflexos de espelhos, cenas de costas, e por closes em suas joias, perfumes e perucas.

Ela se arruma para um jantar surpresa, organizado para comemorar seu aniversário de casamento com Giorgio, um empresário bon vivant, simpático e político. Ele, por sua vez, nos é apresentado ao chegar em casa, cercado por amigos, que logo instauram uma festa na sala de estar do casal. Com poucos diálogos e com uma câmera que flutua pelo cenário dinâmico, fica evidente a quebra de expectativa entre o plano romântico de Giulietta e a realidade que seu marido impõe para a noite.

Fellini, portanto, abre o filme nos apresentando o angustiante impasse do relacionamento. Giuletta se sente insegura diante dos sentimentos do marido, que se mostra sempre distante se sua mulher, drenado pelas companhias que sempre o cercam. Ela, no entanto, mantém a aparência de simpatia e resignação. Esta é, inclusive, a tônica da personagem: por fora parece sempre satisfeita. No entanto, o espectador acessa um nível mais profundo de sua subjetividade por meio das imagens idílicas, simbólicas e aparentemente sem sentido que vão sendo apresentadas, cena após cena.

Giulietta imagina experimentar um contato sobrenatural com o espírito de Iris, uma jovem bela que se revela em sonhos, pensamentos e, no desenrolar do filme, em verdadeiros delírios da protagonista. Ela busca respostas com um grupo de gurus esotéricos que fazem sucesso na cidade, que de fato induzem a personagem a ter visões cada vez mais surreais e assustadoras.

No entanto, ao mesmo tempo que busca soluções metafísicas para explicar seus fantasmas, Giulietta passa a se lembrar do passado e começa a falar: a partir daí acessamos outra paisagem onírica do filme. A montagem nos leva à infância da protagonista algumas vezes, e o espectador passa a entender quais são as associações entre o que ela fala que viveu e as imagens que a atormentam.

Forma-se assim uma espécie de mosaico da história de Giulietta. Passamos a conhecer uma personagem oprimida e neurotizada por um senso de automartirização, imposto a ela por figuras de sua família, da escola e da igreja católica. Uma opressão com profundo recorte de gênero, evidenciando a ascensão dos debates sobre feminismo na ocidente na década de 1960.

Giulietta foi moldada por forças estruturais da sociedade a aceitar um destino de resignação e repressão de suas próprias vontades. É demandado dela simpatia, mesmo que para isso tenha que aceitar em silêncio as injustiças que as relações a impõem.

A obra ganha força ao subverter esta ordem, expondo a protagonista a outras forças, como a erotização exacerbada da figura de Suzy, sua vizinha jovem, bela e livre. Ela apresenta Giuletta a uma outra dimensão da vida, marcada pelo hedonismo e pelo prazer. A partir daí, vemos sua subjetividade se transformar de maneira dialética: os eventos que ocorrem na trama mudam a forma que ela encara a vida. Disto só pode surgir uma síntese, uma nova forma de viver, transformada.

O final, fellinianamente otimista, catártico e idílico, dá a entender que Giulietta supera os traumas ao encará-los de frente, reencenando-os e os analisando sob uma perspectiva nova, que gera síntese e mudança.

Assim como em outras obras de sua carreira, sobretudo em seu período mais experiente, Fellini utiliza do realismo do cinema, subvertendo-o com uma imagética surrealista e simbólica, para tirar um raio-x da burguesia italiana de sua época. Neste caso, o faz para entender mais a fundo a subjetividade feminina, construída numa realidade patriarcal e injusta. E o faz ironizando as respostas metafísicas, montando a narrativa para que se perceba que, no fundo, as respostas estão na história e na memória de cada sujeito.

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