Livro de cabeceira

Quando se deu conta da data, ele percebeu que não poderia passar em branco.

Tinha que ser algo a mais do que pizza ou cinema. Sim, era necessário um presente. Por um momento essa sensibilidade — até então adormecida – o tocou, sendo até um certo motivo de orgulho interno.

Difícil era encontrar no presente ideal. Lembrou-se de quando escrevia: “Escrever não é difícil, o diabo é pensar.” Uma joia? Caro pra chuchu, correndo o risco de desagradar. Quem sabe uma roupa? Piorou! Imagina se é um número maior ou menor? Perderia o pescoço de graça.

Assim crescia dentro de si a angústia do presente ideal. “O diabo é pensar”, lembrava. Até passou por sua cabeça escrever alguma coisa, quem sabe uma cartinha ou um poema. Mas e a chance de sair brega? Embriagado de amor, jamais perceberia o infortúnio daquilo que fora lançado no papel.

Teria que confiar em alguém mais acima. Na sua própria prosa, não. “Bem que o poeta podia me dar uma mão nessa história”, pensou. Ah… e como é necessário tomar cuidado com o que se deseja, pois desejos se realizam.

Uma ideia vem à cabeça como um trovão: “É isso!”

Corre ao shopping. Esqueceu aonde ficava a livraria. “Tanto tempo sem vir aqui”. Depois de uma certa procura pelos corredores cuidadosamente encerados, “pimba”. Ali está a dita cuja. Entra na loja ofegante — as prateleiras tinham mais jogos e séries de televisão que livros. As pilhas de destaque eram compostas por best-sellers, autoajuda (vendia como água) e uma seção de clássicos (excelente presente de aniversário).

— Moço, o que você tem de livro do Vinícius por aí? Pergunta a um funcionário .

— Depende, responde o atendente, enquanto arruma a pilha de best-sellers.

— Como assim depende?

— De qual Vinícius você está falando?

— O poeta, ora! Qual mais seria? Indaga o jovem, como se todos na terra soubessem de seu plano arquitetado.

— Olha. Fora do dia dos namorados esse tem pouca saída, ouviu? Mas temos alguns livros sim.

Guiado pelo atendente, encontra o que tanto procura. Não estão presentes todos os títulos publicados pelo poeta, mas dava para o gasto. Tem a “Antologia Poética” — um apanhado de grandes poemas que cairia muito bem. Para a “Nova Antologia Poética”, valia o mesmo argumento (pena ser uma edição de bolso, ficou tão pobrinha a capa).

Em seguida, “Para Viver Um Grande Amor”. Quando leu o título, arrepiou. Pensou, “Que título. O poeta é profético, genial!” Já havia lido antes, considerava o melhor livro de cabeçeira que alguém poderia ter.

Sem muito o que pensar, decide : — “Eu levo este. Embala para presente, por favor”.

Andava pelas ruas, exultante. Concorria ao prêmio de ser humano mais completo da face da Terra naquele momento. É impressionante como a mera sensação de acerto dá uma felicidade genuína ao homem.

Sua confiança durou bastante. No outro dia, ia até a casa da namorada para a encontrar. Não houve, na humanidade, banho tão longo. Ninguém jamais lembrara de ensaboar tão bem todas as partes do corpo. Até lavou uma roupa na vespéra, a fim de usá-la no grande encontro.

O que lhe fazia dar pulos de alegria era o fato de nada daquilo ser combinado. Fazia tudo numa genuína e juvenil surpresa à amada, o que lhe dava um poder que transcendia a própria vida.

Toma o ônibus em direção ao destino final. Nunca o cobrador havia sido tão bem saudado. Para se ter uma ideia, nem se a menina estava em casa ele sabia. Era necessário uma completa surpresa.

No entanto, no chacoalhar da condução, seu desejo lhe trai. “E se ela simplesmente não gostar de ler? Meu Deus, não tinha pensado nisso.” Um certo desespero toma conta de si — o olho arregala, fica pálido. “Vou precisar convencê-la, é isso.” Começava a tentar formular o argumento perfeito para persuadir sua amada. “É o melhor livro de cabeçeira que alguém pode ter”, pensava.

Na entrada do prédio, o porteiro já o conhecia. Não foi necessária nem uma interfonadinha para liberar seu acesso. Recitava internamente seu mantra: — “É o melhor livro de cabeçeira que alguém pode ter”.

Tocou a campainha e deu uma última conferida em sua roupa. Não foram poucas as vezes que abotoara a camisa de forma errada, saltando um botão. Seria tarde demais para arrumar, mas felizmente estava perfeito.

Abre-se a porta. Com seu short jeans rasgado e uma camiseta do cursinho, por essa ela não esperava. Nem ele, sendo sincero. Em seu inconsciente, imaginava ser recebido com certa pompa e circunstância, mesmo sabendo da condição de surpresa do acontecimento.

Ainda assim, dentro de toda sua simplicidade cotidiana, ela o encanta. “Tão linda”, pensava. E sem nem um bom dia, dispara:

— Comprei para você. Feliz um mês de namoro, e entrega o embrulho.

Ela ainda está atônita. Não entende muito bem o que acontece, nem mesmo esperava que fosse lembrar da data. Já ele pensava, orgulhoso: “Sou sensível pra burro! Posso até escrever um romance.”

A menina balbucia um “não precisava”, para dentro, junto a um certo sorriso encantado com o trabalho de seu parceiro.

Seria agora a hora de começar a argumentar sua escolha ou espera? Pensa: “É o melhor livro de cabeceira. ”No entanto, ao tirar o embrulho, ela abre um grande sorriso e abraça seu namorado, numa paixão jamais vista entre os dois.

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