A Volkswagen homenageou Elis Regina em sua propaganda/celebração de 70 anos da marca em território nacional. A peça gerou recorde de tráfego de pesquisas no Brasil para a Kombi, produto central da obra, e para a montadora.
O objetivo era criar uma cena impossível: juntar, em uma estrada, lado a lado, a cantora Maria Rita e sua mãe, falecida no início dos anos 1980. As duas cantam em dueto a música Como os Nossos Pais, de Belchior, enquanto dirigem diferentes versões de Kombi.
Maria Rita, que representa o presente, estava em um modelo novo, elétrico. Enquanto isso sua mãe dirigia o carro clássico, que realmente é a cara de sua época.
Enquanto isso, cantam um hino do cancioneiro popular. Imortalizada na voz de Elis em 1977, ela versa com um período de queda lenta da ditadura civil-militar brasileira, que passa a conceder liberdades mas que não critica seu próprio comportamento. Acaba em anistia geral aos crimes perpetrados desde 1964, e a conciliação com as forças democráticas do país traçaram um rumo para um longínquo cenário de reestabelecimento da república, que ocorreu somente em 1988 com a promulgação da Constituição Brasileira.
Assim como Belchior, Elis era profundamente inconformada e ressentida com o cenário político brasileiro. Não somente pela falta de liberdade, mas sobretudo pela desigualdade latente. Por isso nunca escondeu a importância da obra politizada e crítica em seu repertório.
Não pôde ver nem participar da redemocratização do país, que ocorrera depois de sua morte, no início de 1982. Um mundo que Elis viveu e sobreviveu teria contornos artísticos, sociais e políticos diferentes, é certo.
Mas voltemos ao filme da Volks. A relação entre passado, presente e futuro, o novo sempre vem, e a renovação dos carros elétricos mostra um certo desejo de lançar luz a um momento esperançoso. A tecnologia vem para criar cenas e duetos impossíveis e para solucionar velhas contradições do passado.
Mas será mesmo? A canção ainda guarda os seguintes versos, que não aparecem no clipe:
Hoje eu sei que quem me deu a ideia
De uma nova consciência e juventude
Tá em casa guardado por Deus
Contando o vil metal
O narrador escancara desilusão contra algum doutrinador, que aparentemente trocou seu ideal por poder financeiro. Dentro da perspectiva de criação de Belchior, há comparações a serem criadas. Não são um segredo suas críticas ao fino da bossa brasileira — ele não se sentia pertencido nem acolhido por nomes da MPB, sobretudo pelos baianos, que procuravam valorizar seus elementos regionais em suas próprias canções.
Portanto, como uma peça de propaganda tenta amarrar um sentido de esperança e felicidade com uma obra que expõe ressentimento e até acusa hipocrisia por parte de figuras formadoras de opinião?
Ainda podemos pensar num mundo feliz harmonioso com a presença de carros pessoais, mesmo que elétricos? Este cenário representa mesmo todo este novo, que sempre vem?
A nova ideia de consciência e juventude é real?
E por falar no tema de realidade, refarei um questionamento já levantado neste site. Será que Elis endossaria o comercial? A mensagem que a peça tenta criar condiz com a realidade do mundo que a artista defendia?
Por sua altíssima capacidade criar semelhanças com a realidade, o produto de recriações como estas acabam por editar nossa memória. De alguma forma, fica internalizado – erroneamente – que Elis estrelou este comercial. Mesmo a imprensa notícia assim.
É uma grande arma para adocicar personalidades fortes e combativas que já não estão mais por aqui. Todo cuidado é pouco.