Cidadão Kane: a fortuna, o amor e a travessia

O clássico cinematográfico de Orson Welles Cidadão Kane é reconhecido por seus feitos técnicos e narrativos no cinema norte-americano. Lançado em 1941, trata de um tema caro aos nossos tempos: a ascensão e influência dos bilionários na vida pública de um país.

Na trama, acompanhamos a repercussão da morte de Charles Foster Kane, um barão da mídia norte-americana do início do século XX. Sua fortuna provêm da mais pura sorte: herdou uma mina de ouro nos terrenos de sua família.

Este fato define algo central na personalidade de Kane: uma certa autopercepção divinizada e narcísica. O quão afetada se torna a visão de um sujeito sobre seu papel no mundo quando lhe chega, de mãos beijadas, toda a riqueza que se possa ter? Mas que, ao mesmo tempo, é privado de si o direito da relação familiar com seus pais? O que mais pesa no coração da personagem? Sua plausível predestinação ao sucesso ou a busca pelo preenchimento do amor?

O protagonista lida com esta dialética por todo o longa. Escolheu de investir na comunicação em massa para deliberadamente distorcer os fatos e manipular a opinião pública. Talvez por poder, sim, mas sobretudo para ser amado por mais gente – fala que sai da boca de seu amigo mais próximo, Jedediah Leland.

Isso é tudo que ele sempre quis da vida… era amor. Essa é a tragédia de Charles Foster Kane. Veja, ele simplesmente não tinha nada para dar.

Jedediah Leland

Kane parece sempre precisar de muito. O acúmulo de estátuas e outros objetos antigos, de grande valor monetário, tentam suprir uma falta que está presa em sua infância. O destino o entregou fortuna, mas também o tornou órfão, entregue a uma relação utilitarista com seu tutor banqueiro. Seus jornais, sua casa de ópera, seu palácio de valor incalculável: escondem uma falta ou são prova de sua excepcionalidade?

Talvez estas questões em aberto, que não nos deixam entender Kane de maneira binária, é que nos cativa a tentar decifrar esta personalidade fascinante.

Há de se reconhecer: a figura de Kane só se sustenta por ser rodeado de personagens coadjuvantes complexos, profundos. Desde os colegas de trabalho, que admiram sua perspicácia mas não o poupam das críticas (e sofrem por isso); até suas esposas – que me parece terem sido as duas mais brilhantes atuações do filme. Ambas sofrem de asfixia ao viverem com uma figura tão egocêntrica.

O caso de Susan, a segunda figura na vida marital de Kane, é mais dramático. Seu desenvolvimento na história é gritante. Conhecemos uma jovem, charmosa e meiga, e nos despedimos de uma mulher traumatizada e assombrada por uma vida surreal.

Ao se casar e passar a viver sob a coordenação de Kane, Susan embarca em protagonismos que jamais sonhara. E como também diz, não pediu por isso. Aliás, suas críticas e queixas são talvez os diálogos mais marcantes de todo o filme.

Amor! Você não ama ninguém! Eu ou qualquer outra pessoa! Você quer ser amado – isso é tudo que você quer! Sou Charles Foster Kane. O que você quiser – basta nomear e será seu! Apenas me ame! Não espere que eu te ame!

Susan Alexander Kane

Seguimos discutindo e analisando a vida de figuras ricas, carismáticas e influentes no mundo todo. Elon Musk, dono da rede social X, ou Jeff Bezos, fundador da Amazon e atual proprietário do Washington Post, vestem facilmente a carapuça de Kane do século XXI.

No caso do sul-africano proprietário da Tesla, os contornos históricos pessoais são ainda mais parecidos. Também é um herdeiro (neste caso de minas de Diamante), teve problemas de natureza afetiva com seu pai na infância, e os levou para a vida. O resultado: Musk tem posturas negacionistas, extremistas e atua contra a soberania de estados nacionais.

De volta a 1941: há por fim uma beleza de metalinguagem no enredo. A história trata de uma grande apuração. E como toda notícia, ou reportagem, é uma montagem de histórias. Um quebra-cabeças, tão simbolizado na porção final do filme. Rosebud, o mistério sutil da palavra final de Kane, de fato não é a peça que se encaixa e dá um panorama completo da história. É, no entanto, a linha sutil que conduz a trama: não um fim, mas uma travessia.

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